Destaque do artigo do Dr. Ricardo Arroja no ECO – Economia Online Sobre os obstáculos que o Fisco levanta aos contribuintes.
15 Fevereiro 2017
Esta é uma história portuguesa, com
certeza. Era uma vez um prestador de serviços que passou umas quantas facturas-recibo
que não conseguiu cobrar...
Há algum tempo que estava para contar esta história. Chegou finalmente a altura de o fazer. Esta é uma história portuguesa, com certeza. Dedico-a aos profissionais liberais e pequenos empresários que em Portugal por ela também já passaram. Partilho-a na esperança de que muitos outros possam ser poupados à mesma situação, e faço-o na expectativa de que quem faz as leis neste país possa pôr cobro ao abuso que de seguida descreverei.
Começando pelo início, o relato que hoje vos trago tem na origem uma dívida
por cobrar. Explica-se do seguinte modo. Era uma vez um prestador de serviços
que passou umas quantas facturas-recibo que não conseguiu cobrar. Sobre estas,
entregou pontualmente ao Estado o IVA que nunca chegou a receber. E, enfim,
depois de infrutíferas diligências de cobrança, acabou credor da massa falida.
A situação foi esta e a catarse está feita. Chama-se a isto risco de crédito. O
problema é o que vem a seguir, para o qual não há psicanálise que resista.
Os processos de insolvência em Portugal demoram em média dois anos. Este é
o tempo médio entre o momento em que o devedor entra em incumprimento e o
momento da liquidação final da massa falida, altura em que o credor fica
finalmente a saber se recupera algum do que teria a haver ou não. No conjunto
dos países da OCDE, o país cujo sistema judicial é mais eficiente a resolver
este tipo de situações é a Irlanda, onde a aclaração demora menos de meio ano.
Em Portugal, o processo é conduzido por um administrador de insolvência,
que reúne numa primeira fase os credores reconhecidos, que são graduados entre
privilegiados e comuns, levando depois uma proposta de recuperação ou de
liquidação à apreciação dos credores. Tenta-se recuperar a empresa ou, seguindo
para bingo, liquida-se a empresa. Eis a questão. A decisão é depois rematada
por um juiz do tribunal do comércio. Até aqui tudo bem.
Quis o destino (para o qual contribuiu a minha inépcia em não ter submetido
um pedido de injunção em tempo útil) que tivesse acabado credor, credor comum,
da massa falida de um cliente. Fiz a reclamação do crédito sem auxílio
jurídico. Quis, eu próprio, percorrer o caminho das pedras, perceber como
funcionava o sistema, poupando-me ainda os honorários de advogado cujo valor,
atendendo ao montante e à probabilidade de recuperação, não justificavam a sua
contratação.
Lido o relatório do administrador judicial, rapidamente ficou claro para
mim que jamais veria um cêntimo do crédito reclamado e devidamente reconhecido.
A partir daquele momento, a minha luta passou a ser outra: recuperar o IVA que
havia entregado sobre um montante que não tinha recebido nem iria receber. Foi
aqui que esbarrei em elementos terceiros. Esbarrei na toda poderosa Autoridade
Tributária, não sem antes esbarrar na lentidão da nossa justiça e nas suas
custas processuais.
Seguindo as orientações que amavelmente me tinham sido transmitidas,
solicitei ao juiz do processo uma certidão para efeitos fiscais com o propósito
de recuperar o IVA. O papel engalanado com selo branco demorou cinco meses a
ser produzido. Lá acabei por receber nota postal da sua feitura. Informava-me o
tribunal que a certidão estava pronta para ser levantada no Campus da Justiça
em Lisboa, mediante o pagamento de €20,40. Questionei porquê Lisboa? – eu moro
no Grande Porto! Questionei também o porquê do pagamento e do levantamento
presenciais – não há uma referência multibanco que eu possa pagar? Não há, em
pleno século XXI, um documento digitalizado que me possa ser enviado por email?
Não, não e não. O documento timbrado teria de ser presencialmente levantado em
Lisboa e custava xis.
Lá fui ao Campus da Justiça. Modernas instalações! Perguntei à funcionária
se era normal pagar por aquele papel. A resposta saiu lesta – hoje tudo se
paga! O senhor Ricardo lá regressou com a certificação do juiz assinada pelo
oficial de Justiça. Tinha agora duas “certificações”: uma do administrador de
insolvência, outra da parte do juiz. Atestavam o mesmo. Estava quase! Mas em
Portugal o “quase” tem muito que se lhe diga…
Ainda iludido com o “quase”, lancei-me no pedido de regularização do IVA.
Mandei carta ao administrador de insolvência, à qual juntei cópia da certidão
judicial para efeitos fiscais, informando-o de que iria solicitar o meu crédito
de IVA, duplamente reconhecido, por ele próprio e pelo juiz! De seguida,
avancei triunfante para a plataforma da AT. Mas logo o meu entusiasmo
esmoreceu. Quadro 5 campo 40 da declaração periódica de IVA? O quê? Quadro 5
campo 40, mas que raios vem a ser isto?!
A plataforma da AT pedia agora uma terceira certificação, a de um revisor
oficial de contas. Uma terceira certificação? De um ROC?! Fiquei vermelho de
raiva. Mas como era possível? Três certificações?! Para quê? Não bastavam a do
administrador de insolvência e a do juiz? Do juiz, senhores! Para quê um ROC
metido ao barulho? Para me dar mais despesa?! Infame – pensei. Fui ler o código
do IVA, artigo 78º, capítulo “regularizações”, e, sim, a lei exigia mesmo a
chancela corporativa do ROC. Um absurdo – concluí. Mas não me restou senão
solicitá-la. Tenho agora três certificações. Só falta ir ao Papa.
O calvário que acabei de descrever e pelo qual passei revela uma
administração fiscal interessada em dissuadir os contribuintes de fazerem valer
os seus direitos. Revela dois pesos e duas medidas. Uma administração fiscal
que é leonina na forma como exerce a sua força bruta sobre os contribuintes,
mas que quando colocada contra a parede usa da espada, lançando sucessivos
golpes para desencorajar o credor.
De facto, fosse eu contabilizar os custos deste tortuoso caminho (cartas,
certidões, custas, deslocações, honorários e paciência) e teria certamente
razões para já ter desistido dos meus direitos. O sistema ter-me-ia vencido
pelo desgaste, levando-me a desistir por argumento racional: o de não valer a
pena a recompensa tendo em conta os custos. Na verdade, é indigno que o Estado
arrelie desta forma um contribuinte que já foi lesado e que, na hora de atenuar
o seu prejuízo, a administração pública não deveria atrapalhar.
Enfim, num país decente, todo este processo deixaria uma pegada digital que
o reclamante pudesse acompanhar “online”. Ademais, tendo o processo transitado
em julgado, imediatamente as autoridades judiciais e fiscais cruzariam dados
entre si. A regularização de eventuais créditos fiscais seria automática e
imediata.
O contribuinte não teria mais com que se preocupar, a sua intervenção
cessaria. Certamente não se obrigaria o contribuinte a acrescentar ao seu
prejuízo pelo pagamento de documentos redundantes, nem se promoveriam fretes
corporativos que emperrassem e onerassem ainda mais o processo. O desfecho
seria simples, escorreito, sem quadros 5 campos 40. Seria coisa feita por gente
decente, para gente decente. Mas não. O que temos hoje é o Estado a sacanear o
contribuinte. É a realidade. Um Estado que, justamente, mereceria desobediência
civil. Talvez então o Estado se tornasse pessoa de bem.